Comezinhas
Espaço e tempo para dizer o menos possível. Ou talvez não. Sempre haverá o que dizer.
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12/06/2024
19/12/2019
30/10/2019
O Bando - Um Conto de Natal
A carrinha arrancou
com o teu piano, corri as cortinas da janela e pensei: depois de amanhã é Natal
e com o piano por afinar não vais tocar. Pousei a mão no teu ombro e anunciei
que vou contar uma história na consoada para contrabalançar. Agora que aprendemos
a esticar o tempo até à altura da nossa idade, e sabemos achar graça além da
alegria, vou revelar a história do meu bando. São amigos que nunca cheirei. Sequer
vi ou ouvi, mas nem por isso deixei de tocar.
Vislumbrei-os em
sonhos, em filmes, em livros; na imaginação pejada de memórias vagas, desde o
tempo em que o meu nariz mal chegava ao balcão da loja de tecidos do Sr.
Fernandes na rua dos Clérigos, até este instante em que te levantas para
desenlear, como costumas dizer, o cabo dos auscultadores. Depois de amanhã vou
pedir que os desligues. Nem computador, nem telemóvel. À falta dos acordes do Ave
Maria de Gounod haverá tão só memória, em forma de história contada.
Começaram a chegar nas
tardes chuvosas, quando estava aconchegada na camilha da braseira da casa das
tílias. O mais bem-disposto era o Trinitá. Entrou na sala com aquele ar
indolente, arrastado na padiola, a assobiar no tom da batida da sertã. Foi ele
que me ensinou a cozinhar feijão à faroeste. Por isso, não estranhes que não
use tacho. Quando virei as costas para ir buscar um copo de água à cozinha, já
estava a ser interrogado por um monge tibetano, bem velhote, com os seus mil e
novecentos anos, muito admirado com o à vontade do cowboy italiano.
Queria saber a razão do nome Trinitá e a associação a Deus. Mas fiquei sem
entender bem a razão; talvez porque não tenha chegado a ler os dois tomos da
história da Irlanda. Saíram pela janela da sala, e atrás deles corriam dois
miúdos. Traziam ambos turbante; o do turbante vermelho chamava-se Zhu, e o
outro, de turbante escuro, viria a ser um temível pirata. Tenho a impressão que
foram primos destes rapazes que escreveram o livro da sabedoria, onde aprendi a
ler nas correntes dos rios, nas montanhas, nas chuvas e nos ventos, os nunca
brilhantes resultados dos testes do liceu; esqueci sempre coisas importantes,
como a existência do oráculo dos ossos, o começo da escrita chinesa, há três
mil anos. Mas, bem-feitas as contas, o que é isso para o Australopiteco, que
estava sentado na ponta do banco de pedra, no cantinho das casa das tílias, a
conversar com a Carochinha e o João Ratão, sentados nas cadeiras de estopa.
Assisti às conversas. A Carochinha tinha conhecido o piteco dos três milhões de
primaveras, na sua primeira encarnação, por altura do degelo, há doze mil anos,
quando desceu das planícies verdejantes do agora Sahara para cumprimentar o
Mostrengo. O tal que muito mais tarde, assustou os navegadores portugueses, de
mãos atadas ao leme pela vontade de um homónimo do João Ratão, ou seria da
Nação? Não desfiz a dúvida, mas a sei pela Carochinha que comigo deu voltas em
torno na casa, rolando o seu montinho de caca, que foi tudo mal-entendido.
Queria brincar aos barquinhos e não tinha noção do seu tamanho; coisas de
solitário. A admirar as pequenas flores cor-de-rosa, dos arbustos que rodeavam
o terreiro, encontrei o Cabinda muito orgulhoso da sua terra, que acabou
engolida por Angola, por Portugal a ter desenhado assim. Ouvi dizer isto aos
adultos, sentados à grande mesa de jantar, quando perguntei porque é que o meu
amigo se zangava por lhe chamarem angolano. É a história da humanidade, essa
desenhada às vezes a régua e esquadro, outras a trincheira, quando muito a
tratado. Talvez por isso, ao descer a rampa para ir para a escola, tenha visto
a rainha Ginga junto ao tanque em cima de um inglês. Soube mais tarde que não
gostava de cadeiras, mas sim de se sentar em escravos e o Dr. Livingstone
apareceu confortável. Num final de tarde ventoso, fui ajudar a fechar as
portadas do piso de cima da casa, subi ao torreão, reparei que uma das arcas de
madeira antigas estava entreaberta e faltava um cobertor de papa. Ao acabar de
correr os ferrolhos das portadas, voltei-me e estava o índio Tupi encostado na
porta, envolto no cobertor, a beber chá-mate. Trouxe-me notícias da América do
Sul e do mundo sobrenatural e esotérico que me atrai tanto. Passamos horas,
sentados no chão do terraço, a olhar para o céu estrelado, a conversar sobre
livros com feras selvagens e brigas humanas pelo poder, que saboreei sem sequer
ter percebido. Coisas que admito por ter idade suficiente para saber que pouco
nos dá tanto prazer como aquilo que não entendemos.
Convidei a fada Oriana
para o chá preto das cinco. Mal chegou contou que assistiu no comboio a uma
discussão entre Van Gogh e Goya. Ouviu-o dizer que os seus conterrâneos tinham
degenerado. A regra e a severidade protestante fizeram capitular a sua terra.
Goya abanava a cabeça em desacordo. O homem dos desastres da guerra peninsular,
acreditava em mentes esclarecidas. Tivesse o outro conhecido a intolerância
religiosa, vivido em Espanha no seu tempo, ou mesmo mais tarde, na década de
trinta do século XX, e veria o lado negro humano. A fada Oriana lembrou-se da
carta que Jorge de Sena escreveu aos seus muitos filhos, e juntou-se a Goya
para tentar contrariar Van Gogh. Tinha uma costela dinamarquesa, percebia
melhor a luz sombria dos comedores de batatas e o hino à vida da amendoeira em
flor e, se bem que quase acreditasse que os males da história não se repetem se
forem lembrados, o seu afã de bem dizer a vida não foi suficiente para
contradizer o sofrimento de quem pensa e cria com verdade.
A última vez que fui à
casa estava esventrada e metade das tílias tinham caído, mas ainda pude ver o
Cabinda, a quem tu chamas dred da Cova da Moura, só porque nesta
encarnação foi parar à Amadora, veste roupas largas e usa penteado a condizer,
em amena conversa com a fada Oriana. Contava divertido as caricatas neuras da
namorada. Na última zanga saiu de casa, enfiou o Buda cor-de-laranja de
porcelana debaixo do braço e apresentou-se assim no check in de uma
pensão. O recepcionista ainda pensou fotocopiar o cartão de cidadão da imagem,
contra alei, mas deteve-se face ao olhar furibundo da mulher que pegava
decidida na mala de plástico rijo verde alface, com o autocolante das últimas
férias em Maiorca. A fada Oriana riu; preferia o mar e as rochas da Granja com
o seu sossego de conchas e búzios, e pensou que o poeta deveria estar à sua
espera.
Aproximei-me deles.
Sorriram e apontaram para a janela da garagem, de onde vinha uma luz trémula de
vela. Abeiramo-nos da pequena janela lateral e vimos que já não havia nem carro
nem ferramentas, apenas uma mesa no centro com um livro aberto, e uma cadeira
onde estava sentado o monge copista, dos que passam horas a fio a registar os
textos sagrados, até não haver luz do dia e a vela tremelicar. Desenhava com
uma pena os últimos poemas. Acabou, ergueu-se e esperou que a tinta secasse.
Com o livro na mão, veio ter connosco. Deu uma chave à fada Oriana, avisou que
estavas quase a começar o concerto, e o resto do bando estapafúrdio nos
esperava. Entregou o livro da poesia de Fernando Pessoa ao dred da Cova
da Moura, declarando-o seu guardião. Agradecidos os presentes de Natal,
despedimo-nos e subimos as escadas de pedra. A fada Oriana abriu a porta, o
Cabinda pousou o livro na papeleira e juntamo-nos aos outros, para te ver
sentado ao velho piano roufenho do salão, fazer soar os primeiros acordes da tua
ode ao reencontro.
07/08/2019
06/08/2019
03/08/2019
02/08/2019
Pilha de livros
Antologia do Conto Português, de João de Melo.
A Substância do Amor e Outras Crónicas, de José Eduardo Agualusa.
História do Mundo, de Andrew Marr.
Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro.
Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares.
Os Treze Enigmas Um Mistério de Miss Marple N.º 5 de Agatha Christie.
Contos Reunidos, de Aldous Huxley.
A venturosa história do usbeque mudo, de Luis Sepúlveda.
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